sábado, 22 de junho de 2019

O desporto como fator de mudança social

O desporto na sociedade


O desporto é considerado um instrumento de mudança social significativo e consegue chegar a inúmeras pessoas em todo o mundo e, nesse sentido, pretende-se com este artigo mostrar como o desporto consegue, de facto, unir pessoas com estilos culturais e sociais completamente distintos. Primeiramente é dado ênfase ao papel do jogo como função social, isto é, a forma como o jogo exerce uma grande influência na sociedade.

O jogo ao estar enraizado na cultura e na sociedade, assume um papel de extrema importância para qualquer indivíduo na construção de relações sociais. Uma vez que funciona como uma “fuga” da realidade, permite às pessoas obter uma grande satisfação e extrair um grande prazer ao praticar uma dada atividade, conseguindo abstraírem-se de qualquer fenómeno problemático da vida quotidiana.

Para além da sua importância a nível social, cultural e pessoal, o jogo adquire também um papel vital a nível da formação e da educação das pessoas, estando inserido em métodos de aprendizagem para os alunos melhorarem a lógica e o raciocínio através de atividades físicas e mentais que estimulam todos os processos afetivos, cognitivos, sociais, morais, culturais e linguísticos.

O jogo é, assim, uma atividade especial que consegue mover um conjunto enorme de pessoas. Consegue enfeitiçar-nos porque nos entregamos a ele e é através do jogo que expressamos tudo o que sentimos.

Após realçar o papel do jogo, torna-se imperial analisar o papel do desporto como fator de mudança social e consegue-se compreender que o desporto é algo útil para a nossa vida e que as pessoas o praticam cada vez mais com regularidade e que assume um impacto significativo nos media e na sociedade.
O desporto, de facto, afeta a nossa vida em diferentes níveis e a sua importância ganha uma maior relevância quando é atribuída ao lazer, melhorando a comunicação entre as pessoas e promovendo a igualdade de géneros, com o intuito de prevenir conflitos de discriminação raciais, culturais e étnicos.


O desporto é assim uma importante ferramenta de aproximação e de integração de pessoas, fazendo com que a ONU declarasse, em 2005, o ano do desporto, tornando claro que é um meio para promover a educação, a saúde, o desenvolvimento e a paz no mundo.

Nesse sentido, é necessário mostrar na prática como o desporto consegue provocar mudanças sociais e como tal, numa última fase, são dados exemplos reveladores em como o desporto pode ser usado para mudar o mundo.

O JOGO COMO FUNÇÃO SOCIAL

Com o propósito de analisar o papel que o desporto tem numa sociedade torna-se imprescindível compreender o papel do jogo e a maneria como este consegue influenciar milhões de pessoas. De acordo com Huizinga (2000, pág.24), o “jogo é uma atividade ou uma ocupação voluntária, praticada dentro de certos e determinados limites de tempo e espaço, segundo regras livremente aceites, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão, alegria e de uma consciência de ser diferente da «vida quotidiana»."

Huizinga (2000) explora o conceito de jogo como uma atividade de grande prazer lúdico em que as pessoas conseguem, de facto, abstrair-se de todos os problemas do quotidiano e entregarem-se ao jogo, por vezes de uma forma séria, retirando do mesmo uma grande satisfação pessoal, pois é através do jogo que as pessoas expressam o que sentem, o que o torna muito importante para a nossa vida.

Todo este entusiamo e satisfação, mesmo a “fingir”, não deixa de tirar valor e importância para as pessoas, porque funciona como uma “fuga” da realidade. O facto de as pessoas procurarem a superação e a vitória, aumenta ainda mais a motivação de querer jogar, em que a tensão sobe e o prazer de querer vencer aumenta mais ainda, isto é, “O jogo lança sobre nós um feitiço: é "fascinante", "cativante". Está cheio das duas qualidades mais nobres que somos capazes de ver nas coisas: o ritmo e a harmonia” (Huizinga, 2000, pág. 12).

Huizinga (2000) reforça a ideia que o jogo já existe antes da própria cultura, tornando-o num fenómeno universal, não só para os seres humanos como também para os animais, uma vez que estes não esperaram que os homens os ensinassem a brincar. Torna-se assim parte integrante de uma tradição e da cultura de uma sociedade, pois as pessoas ao jogarem tornam-se livres, melhoram a criatividade, o fortalecimento do espírito e do corpo, podendo, ainda, ser jogado ao longo da vida sem que a idade interfira.

Huizinga (2000) indica que o aspeto lúdico do jogo está presente em todos os processos culturais da vida social e que o espírito competitivo, sendo mais antigo que a cultura, molda tudo à nossa volta. Como exemplo temos o ritual que advém do jogo sagrado; a poesia que nasceu do jogo; a música e a dança eram jogo puro; o saber e a filosofia eram originárias de competições religiosas, assim como as regras da guerra eram baseadas em modelos de jogo. Consegue-se, desta forma, afirmar que a cultura está enraizada no jogo desde as suas fases primitivas.

Os jogos lúdicos assumem, também, uma importante função social ao nível da aprendizagem na educação e formação. De acordo com Santos (2010, pág.3), “Os jogos lúdicos oferecem, aos alunos, diversas situações/problemas, a partir do desenvolvimento de jogos planeados e livres que permitam à criança uma vivência no que diz respeito às experiências com a lógica e o raciocínio, permitindo atividades físicas e mentais que favorecem a sociabilidade e estimulando as reações afetivas, cognitivas, sociais, morais, culturais e linguísticas.”

 A atividade lúdica, seja para animais ou para seres humanos, compreende sempre um sistema de regras que não podem ser desrespeitados. Todos os jogos são dotados de regras que se forem desobedecidas, “implica o fim do mundo do jogo. O jogo acaba: O apito do árbitro quebra o feitiço e a vida "real" recomeça” (Huizinga, 2000, pág. 12).

Huizinga (2000) indica que as regras dão ao jogo um certo “controlo”, uma vez que a tensão está presente e assume-se como um elemento importante no jogo. Este tipo de tensão (que significa incerteza), faz com que o jogador queria triunfar à custa do seu próprio esforço, procurando exceder-se e colocando-se à prova para conseguir vencer. As regras estão delineadas para que as pessoas não ultrapassem os limites do aceitável e respeitem sempre as regras de jogo.    
Huizinga (2000) explica que o motivo do jogo ser tão especial e característico, de forma a cativar milhões de pessoas, reside no seu mistério, isto é, a ideia de que o jogo “é só nosso” e não dos outros, faz com que dentro daquele círculo as leis e os costumes do quotidiano percam o seu propósito e entramos num mundo de fantasia, que é manifestado, pela sua maioria, pelos jovens, mas também pelos adultos por se entregarem de corpo e alma àquele momento.

O DESPORTO E A MUNDANÇA SOCIAL

Após percebermos qual o papel do jogo e como ele influência a cultura e a sociedade em que estamos inseridos, é essencial olhar para o desporto como um fator de mudança social.

O desporto faz parte do nosso dia-a-dia e assume-se como um dos fenómenos mais importantes da sociedade contemporânea. Para isso, basta observarmos o impacto que o desporto tem vindo a ter nos cidadãos e o tempo que é despendido pelos meios de comunicação social a divulgar informações sobre o tema; os vários eventos organizados por diversas instituições, em todo o mundo, sobre o desporto na sua generalidade e as dinâmicas sociais e culturais implicadas. Pode-se então afirmar que o desporto consegue de facto afetar diversos níveis: pessoais, comunitários, sociais, culturais, económicos, políticos e diplomáticos (Neto, s.d.).

Segundo a Comissão Europeia, no Livro Branco sobre o desporto da Comissão das comunidades Europeias de 2007, “O desporto atrai os cidadãos europeus: a maioria deles participa regularmente em atividades desportivas. Gera valores importantes, como o espírito de equipa, a solidariedade, a tolerância e a competição leal (fair play), contribuindo assim para o desenvolvimento e a realização pessoais. Promove a contribuição ativa dos cidadãos comunitários para a sociedade e, consequentemente, a cidadania ativa. A Comissão reconhece o papel essencial do desporto na sociedade europeia, em particular quando esta precisa de se aproximar mais dos cidadãos e de lidar com as questões que a eles dizem diretamente respeito” (Comissão, 2007, pág. 6).


“O desporto contribui de forma importante para a coesão económica e social e para uma maior integração na sociedade. Todos os residentes devem ter acesso ao desporto. Por conseguinte, há que ter em conta as necessidades e a situação específicas dos grupos sub-representados e o papel especial que o desporto pode representar para os jovens, as pessoas com deficiência e os mais desfavorecidos. O desporto pode igualmente facilitar a integração na sociedade dos migrantes e das pessoas de origem estrangeira e promover o diálogo intercultural” (Comissão, 2007, pág. 14).

De acordo com a Comissão Europeia (2007), o desporto estimula a ideia comum de pertença e de participação, uma vez que pode também constituir uma ferramenta importante para a integração dos imigrantes. Neste sentido, é importante criar espaços para a prática de desporto e apoiar as atividades desportivas, de modo a permitir aos imigrantes um melhor acolhimento na sociedade.

De acordo com Louise Frechette, Secretária-Geral Adjunta da ONU no World’s Sports Forum 2000: “O poder do Desporto é muito mais do que simbólico. Vocês são os motores do crescimento económico. Vocês são uma força para a igualdade de género. Vocês podem trazer a juventude e outros marginalizados, fortalecendo o tecido social. Vocês podem promover a comunicação e ajudar a acabar com as divisões entre as pessoas, comunidades e nações inteiras. Vocês podem dar um exemplo de fair-play” (citada por Coalter, 2006, pág. 3).
Este ponto de vista de Louise Frechette, reflete-se no compromisso da ONU em designar o desporto como meio de promover a educação, a saúde, o desenvolvimento e a paz no mundo. Nesse sentido, as Nações Unidas declararam, em 2005, o ano do desporto, afirmando que o mesmo desempenha um papel fundamental na melhoria da vida das pessoas e que deve ser incluído de uma forma mais sistemática em todas as comunidades e sociedades (Coalter, 2006).

“O desporto é, assim, considerado como um condutor mundialmente reconhecido de aproximação de populações e comunidades. Constitui-se como um código de comunicação tão espontâneo como eficaz, potencialmente mobilizador do desenvolvimento da afetividade, expressividade, disciplina, criação de valores éticos e estéticos, hábitos de higiene, entre outros” (Lima, 2011, pág. 30).

Lima (2011), reforça a ideia que a valorização do papel do desporto como exercício físico, mas também como forma de prevenção de futuras doenças, é essencial para o processo de inserção social.

Thomas Bach, salientou, num discurso na Assembleia Geral da ONU, a importância que o desporto tem na promoção da igualdade de género, da inclusão social, na construção da paz e prevenção de conflitos. Bach destacou, ainda, que o desporto assume um papel essencial no avanço da agenda para o desenvolvimento sustentável, da ONU, afirmando que o desporto é um parceiro natural para a realização da agenda e que liderará o desenvolvimento global nos próximos 15 anos.


Conclui-se que o desporto é considerado como um dos fenómenos sociais mais importantes e pode-se dizer que tem servido para a melhoria da comunicação entre as pessoas, como uma âncora linguística positiva. O desporto também se apresenta como uma necessidade no que respeita à aprendizagem e formação educativa das pessoas (Freitas, 2000). O desporto é igualmente importante na transmissão de valores essenciais como o trabalho de equipa, disciplina ou amizade, sendo que a prática de atividade física é especialmente benéfica para a melhoria de saúde mental e física, tornando-se importante no que respeita à luta contra a obesidade. O desporto é, assim, considerado como uma excelente alternativa para desviar as pessoas de atividades sedentárias como a televisão, os jogos de vídeo, a internet, etc. É também considerado como uma ferramenta essencial na luta de todos os tipos de discriminação, mas também um meio de integração para comunidades imigrantes (Lima, 2011). 

O DESPORTO E A MUDANÇA SOCIAL NA PRÁTICA

O desporto em geral tem uma particularidade de mobilizar massas e mover multidões, em que lhes é incutido um espírito de pertença a uma comunidade porque as pessoas vivem o desporto como algo único (Neto, s.d.). Um excelente exemplo interno é o caso do Europeu que Portugal organizou em 2004 em que o selecionador nacional, Luís Filipe Scolari, pediu a toda a população portuguesa para colocar as bandeiras nas janelas em sinal claro de apoio à seleção nacional de futebol. Este apelo reivindicou a união outrora esquecida pelos portugueses e, ainda nos dias de hoje, essa tradição ainda é visível (Amnistia Internacional, 2008).

A organização Sports Witlhout Borders, realizou, em 2009, um projeto denominado, The AFL Peace Team, que tinha como objetivo construir relações entre as comunidades palestinianas e judaicas através da criação de uma equipa palestino-israelense, de forma a competir na Internacional Cup AFL. Esta iniciativa fez com que atletas israelitas e palestinianos convivessem uns com os outros, pondo de lado o conflito de décadas entre as duas cidades promovendo o espírito de companheirismo e solidariedade, ao longo de todo o torneio.

Outro exemplo de como o desporto pode ser visto como uma ferramenta de mudança social poderosa, foi a exposição fotográfica que a UEFA albergou em 2010, durante a oitava edição do Campeonato do Mundo de Futebol de Rua dos Sem-Abrigo, que decorreu no Rio de Janeiro. De acordo com uma notícia publicada no site da UEFA (organizadora do evento), estas fotografias mostraram como o desporto (neste caso o futebol), pode ser usado como catalisador de questões sociais, como é o caso dos sem-abrigo. A exposição fotográfica, teve como missão contar histórias, através das fotografias, sobre como o desporto pode ajudar a alterar a vida de uma criança, de um adulto, de uma família e até mesmo de uma comunidade.

Agora, analisando um caso mais complexo, Nelson Mandela conseguiu usar o desporto para unir uma população, proclamando os seus ideias de igualdade e liberdade, vivendo sob princípios que se intercetam enquanto representante máximo da comunidade, enquanto pessoa e enquanto praticante de desporto (boxista). Este feito de Nelson Mandela (que deu origem a um filme realizado por Clint Eastwood, denominado “Invictus”), começou a 11 de fevereiro de 1990, data em que foi libertado da prisão, depois de uma vida inteira dedicada à luta contra o apartheid e de passar 27 anos na prisão (Helal e Amaro, 2011).
No ano de 1995 (cinco anos após deixar a prisão e um ano depois de ter sido eleito o presidente do país), quando ainda o país sul-africano estava a sair de um regime de segregação racial, Nelson Mandela tinha a esperança de conseguir unir a nação e encontrou no campeonato do mundo de râguebi o motivo para o fazer (Helal e Amaro, 2011).



A equipa de râguebi da África do Sul não era a favorita a vencer o torneio, apesar de ser a anfitriã. E jogo a jogo os atletas foram superando as expectativas e foram vencendo os adversários até chegar à grande final que seria jogada com a seleção de râguebi da Nova Zelândia, os grandes favoritos a vencerem o torneio (Helal e Amaro, 2011).

Antes do apito inicial da partida, Nelson Mandela tem o que é considerado um dos gestos mais emblemáticos da sua carreira política, em que aparece com o equipamento dos Springboks cumprimenta todos os jogadores perante um estádio completamente cheio. O treinador da seleção neozelandesa refere que aquele momento foi marcante “Não sabíamos que aconteceria daquela forma. Quando Nelson Mandela apareceu no campo com a camisa Springbok, o público explodiu em júbilo. É a experiência mais assombrosa que vivi num estádio de râguebi”. Até mesmo o ponta neozelandês Jonah Lomu, não ficou indiferente com o momento da aparição de Nelson Mandela, “Era como se a pressão mudasse completamente para o nosso lado, já que eles tinham Nelson Mandela.”

África do Sul vence a favorita Nova Zelândia e Nelson Mandela tinha, assim, coroado os seus esforços e dado um passo decisivo com o propósito de construir uma nova nação com o feito incrível do râguebi. Mandela consegue, através do desporto, promover a integração nacional e criar uma única identidade para a população sul-africana, iniciando um processo de pacificação do país pondo fim a anos de lutas raciais (Helal e Amaro, 2011). De acordo com Carlin, citado por Helal e Amaro (2011, pág. 12), Mandela afirma que o ““o Desporto tem o poder de mudar o mundo [...] o poder de unir pessoas que têm pouco em comum”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“O desporto pode criar esperança onde antes havia desespero; é mais poderoso que o governo em quebrar barreiras sociais; o desporto tem o poder de mudar o mundo”. José Manuel Constantino, Presidente do Comité Olímpico de Portugal

O desporto tem, de longe, um poder incrível, conseguindo mobilizar, inspirar, atrair e unir pessoas ao redor o mundo. Através da revisão de literatura, consegue-se concluir que o desporto e o jogo andam de “mãos dadas” e são parte integrante na cultura e na sociedade das pessoas. Representam um papel muito ativo no dia-a-dia; contribuem para o bem-estar e saúde dos indivíduos; ajudam a ultrapassar barreiras culturais, sociais, raciais, étnicas e interpessoais; funcionam como um escape à realidade, contribuindo para mudanças sociais significativas.   


É notório que o desporto está em progressão e é usado como forma de melhorar a qualidade de vida das pessoas e é de salientar o esforço que algumas instituições, como a ONU e a Sports Without Borders, tem para promover, não só o aumento da atividade desportiva em determinadas comunidades, como também para mudar mentalidades com o objetivo de possibilitar a convivência em harmonia e paz.

O desporto permite que as pessoas procurem a excelência e tenham a esperança de um mundo melhor, algo que para Nelson Mandela nunca foi perdido. A sua perseverança em construir a nação arco íris, fez com que o feito conquistado seja considerado, ainda nos dias de hoje, como um dos mais notáveis processos de união de uma sociedade.

O desporto está ligado à vida e a sua capacidade em transformar uma sociedade está na base de tudo. O desporto deve, assim, incluir todos e precisa de ser encarado como um formador de pessoas com valor e carácter.

quinta-feira, 13 de junho de 2019

A ética no desporto e no remo em particular

A ÉTICA NO DESPORTO


Mais do que uma atividade, o desporto tornou-se um estilo de vida, uma forma de estar e também de parecer. Expressão da nossa civilização, ele alinha o passo com o progresso pela performance e o recorde, mas também é um momento de convivialidade e de partilha, que a civilização individualista tende a esquecer. Ele incarna a recusa de uma civilização muito urbanizada, pela evasão de espaços naturais. A realidade desportiva é diversa e variada, segundo as finalidades e os modos de prática adotados pelos indivíduos.

Que uso se faz da noção de ética na retórica desportiva? Qual é o seu papel? A ética tem o mesmo sentido que a moral, que significa, etimologicamente, o conjunto dos costumes. 

Ela define um ideal de bem por um conjunto de valores que, sob a forma de regras, servem para guiar e prescrever as condutas dos indivíduos. Concebido em torno de valores de justiça e de igualdade, o desporto assenta em dois princípios fundamentais que são as regras e o respeito das mesmas.

O cumprimento dos valores morais traduz uma disposição durável, que chamamos de virtude. O fair-play (habitus inglês adquirido pela educação dos colégios a partir da regra do self-control, de reserva e de distanciação: a razão deve ter a primazia sobre a emoção), o respeito, a integridade são uma realidade em si mesmo. 

Os valores pertencem a uma categoria mais abrangente, que compreendem regras jurídicas e as regras morais. As regras jurídicas (os regulamentos, as leis) participam numa regulação do corpo social. Elas têm por objetivo tratar das relações entre as pessoas e também as relações entre as pessoas e as coisas. 

Elas têm a ver com um certo tipo de domínios (segurança, manutenção da ordem, proteção dos bens, garantia dos contratos, definição de normas, etc.), cuja transgressão pode incomodar a sociedade. O constrangimento moral assenta sobre a boa vontade, que tem a sua fonte na interioridade da consciência pessoal.

Ela revela, literalmente, do for intérieur (para o interior) por oposição ao for extérieur (para o exterior), que representa a autoridade da justiça humana.

Coubertin está certamente na origem dos valores atuais do desporto, se bem que estes evoluíram muito. Ele via no desporto moderno um meio de atingir um ideal humano.  O ideal se prossegue com a fórmula mens sana in corpore sano, um espírito são num corpo são, emprestado à Antiguidade Romana e, particularmente, à décima sátira de Juvenal (por volta de 360 a.C.). Coubertin modificará em mens fervida in corpore lacertoso, traduzido por “um espírito ardente num corpo musculado”.

O fair-play, o jogo franco e a lealdade são os traços maiores do sportsman, que respeita as regras do jogo. Depois vem a combatividade, que se assimila à coragem, à tenacidade, à resistência, segundo a conceção darwinista do “struggle for life” (lutar pela vida). A combatividade leva à “liberdade do excesso”, que permite o recorde.


O desporto é o garante da ligação social, porque os atletas não só têm que respeitar as regras, como são, muitas vezes, obrigados a jogar juntos, a se confrontarem em conjunto, a se apoiarem mutuamente, e de se entreajudarem para pretender a vitória.

A ética no desporto surge, especificamente, sobre a forma de princípios, de valores, de proibições difundidas, essencialmente, pelo CIO – Comité Olímpico Internacional, no seio da Carta Olímpica. Muitos dos códigos estabelecidos pelas federações se inscrevem na continuidade do CIO, para promover os valores olímpicos. 

Estes valores do desporto constituem, para a humanidade, um ideal suposto incarnar uma verdadeira filosofia sob a forma de um estilo de vida. A Carta Olímpica é acompanhada de um código ético, cuja primeira edição data de 1999.

Um outro traço da ética do desporto é a referência à integridade. Este valor, que remete para a honestidade e imparcialidade, tem a ver, sobretudo, com os membros do CIO que têm a responsabilidade da organização dos JO – Jogos Olímpicos. Ela procura prevenir contra a corrupção. O código é um dos pilares de referência última, de todas as práticas desportivas, sejam elas federativas, profissionais, nacionais ou internacionais.

O modelo imperativo da ética considera que a moralidade se exprime na prática por princípios que os indivíduos devem respeitar de forma formal. É o filósofo alemão Kant (1785 [1984]) que está na origem desta conceção imperativa do dever, que chamamos de ética deontológica (do grego deon, que significa dever). O dever e a obrigação não têm uma origem externa da lei, mas de um atributo do sujeito moral. A Carta Olímpica e o Código Ético do Movimento Olímpico inscrevem-se nesta conceção imperativa.

Na Éthique à Nicomaque, de Aristóteles, faz-se referência à ética da virtude. A pessoa virtuosa tem o sentimento de bem fazer, de fazer com prazer e sinceridade numa ação benéfica para o próximo. É uma ação emocional e racional, que confere a quem o exprime um estatuto estimável e exemplar. A dopagem, a batota, a corrupção, as discriminações, etc. são as derivas últimas do desporto. Existe, assim, uma “plasticidade” ética do desporto.
Em algumas décadas, o universo de virtudes descompõe-se. O desporto livrou-se do lirismo das virtudes e, na atualidade, responde a uma lógica pós-moralista, narcísica e espetacular. A idade moralista terminou. É o desporto-moda que prevalece. 

O desporto virtuoso metamorfoseou-se numa esfera reciclada pela lógica da mercantilização e da diferenciação marginal.